Veríssimo, a primeira vez

No início dos anos oitenta saí da minha cidade natal, Cachoeira do Sul, e me estabeleci em Porto Alegre. A maioria dos jovens do interior seguia esse mesmo caminho. No trajeto de duzentos  quilômetros, dentro de um ônibus da Unesul, deixei de ser adolescente para virar adulto.
Juro que foi essa a sensação! Incrível como o tempo pode acelerar e também desacelerar.
Daquele momento em diante as brincadeiras da adolescência perderam o sentido e ficaram para trás. Havia chegado a hora de virar adulto. Uma das obrigações da vida que entra sem pedir licença, arrombando a porta.

Dentro do ônibus fiquei preenchendo os formulários de inscrição da UFRGS e da PUC. Na PUC cravei “Publicidade e Propaganda” e na UFRGS não encontrei essa opção e escolhi Química. Escolhi esse curso porque era a matéria que eu mais gostava no segundo grau. E eu gostava por causa de um professor genial que tive, que sempre fumava na classe. Numa das aulas, uma colega acendeu um cigarro e ele pediu para ela apagar. A menina contestou:

-Mas você está fumando.

E ele respondeu, espirituoso:

-Eu posso porque eu sou professor.

Poderia soar autoritário, mas dito por ele não. Minha colega apagou o cigarro enquanto o professor continuou fumando o dele. 

Havia um detalhe no formulário da UFRGS: Publicidade e Propaganda estava dentro do curso de Comunicação Social. E eu não sabia disso. Parece uma piada, mas aconteceu de verdade. No final das contas, passei no vestibular da PUC e levei pau em Química. Melhor assim. Sem dúvida as Humanas tinham muito mais a ver comigo.

Um ano depois fiz o vestibular novamente. Dessa vez, passei em Artes Plásticas na Federal e comecei a cursar as duas faculdades ao mesmo tempo. Como os cursos até então não me exigiam muito, deu para tocar adiante sem que eu enlouquecesse de tanto estudar.

Eu tinha vinte anos e a vida estava despertando novamente para mim. Agora eu estava na capital gaúcha e as opções culturais eram imensas. Passei a devorar todo o tipo de cultura e conheci pessoas que foram fundamentais para o meu futuro. Quadrinhos eu desenhava muito e publicava quase nada. Faltava fazer boas conexões.

Um dia eu estava mostrando minha pasta de cartuns no bar do Instituto de Artes. E notei um cara estranho no fundo, vestindo capote e um estiloso chapéu russo. Ele parecia estar interessado na minha pasta, se chamava Alemão Guazzelli e também desenhava quadrinhos. Na época ele fazia um fanzine chamado Kamikaze. Eu não me atrevi a pedir para publicar no fanzine dele porque achava o meu desenho muito tosco. Papo vai, papo vem, um dia descobri que ele era amigo do escritor Luís Fernando Verissimo, que todos diziam ser um cara acessível e simpático. Pedi a ele o telefone do Verissimo, assim meio sem jeito, e ele me deu. Agora era comigo.

Um dia, respirei fundo, tomei coragem e resolvi ligar para a casa dele, de um orelhão. Lúcia, sua esposa, atendeu:

-Eu gostaria de falar com o Verissimo.

-Quem está falando?

-Ele não me conhece. Quem me passou o telefone foi o Alemão Guazzelli. Me chamo Adão. Faço quadrinhos. Queria mostrar meu trabalho a ele.

-Espera um minuto que eu vou chamá-lo.

Pausa. Eu estava muito nervoso. Então senti que alguém pegou o telefone. Meu coração parecia que ia explodir. De repente alguém fala. Reconheci a voz dele das entrevistas na TV:

-Quem fala?

Repeti todo discurso anterior e ele me disse:

-Legal, passa aqui semana que vem. Terça está bom pra você?

Como assim está bom pra “mim”, pensei? Porra! Se ele dissesse para eu passar no dia 29 de fevereiro, eu estaria lá nesse dia.

Na época eu morava no bairro Partenon. Verissimo morava no bairro Petrópolis. São bairros vizinhos e eu até já o tinha visto no ônibus, ele às vezes pegava a mesma linha para ir até o centro. Estávamos distantes por uns quinze minutos de caminhada.

A terça-feira enfim chegou. E lá estava eu, na porta na casa do Verissimo. Toquei a campainha e a Lúcia veio me atender. Ela gentilmente me ofereceu uma poltrona em uma antessala.

-Espera que eu vou chamá-lo.

Esperei cinco minutos que pareceram cinco horas. Enfim ele chegou e nos cumprimentamos. Sentou na poltrona à minha frente e entreguei minha pasta a ele. Ele não era de falar muito. Começou a folhear a pasta sem pressa e de vez em quando ria de algumas piadas. A cada risada dele meu ego tinha orgasmos múltiplos.

Depois de olhar a pasta, disse:

-Muito legal o seu trabalho. Tem influência do Wolinski, Glauco, Henfil. Publica em algum lugar?

Disse que não, e ele continuou:

-Tenho um amigo em São Paulo. Se quiser posso te conseguir o telefone dele.

-Ah, legal. Obrigado.

-Ele se chama Angeli.

Me passou o telefone e disse:

-Diz que foi recomendado por mim.

Nos despedimos. Acabei não ligando para o Angeli, eu achava meu trabalho ruim para as revistas da editora dele, a Circo.

Na semana seguinte deixei um flyer da minha primeira exposição individual de quadrinhos para o Verissimo que foi no Espaço IAB em Porto Alegre. Para minha surpresa, ele publicou o cartum meu do flyer na sua coluna do jornal Zero Hora. Ele escreveu bem sobre mim, sobre meu trabalho e indicou a exposição!

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