São Paulo, meu! — Parte 3/3

A odisseia seguia… Uma pernada até a Praça da República, no centro, e eu e o Leandro nos deparamos com um formigueiro de gente. Me lembrou imediatamente a rodoviária Tietê. Pessoas indo e vindo, vindo e indo. Executivos de terno e gravata com o olhar tenso. Estudantes batendo papo despreocupados. Casais se pegando. Mendigos, gostosas, larápios, pregadores, cantores, homens—sanduíche anunciando “vendo ouro” e outras bugigangas, toda sorte de malucos.

Caminhamos um pouco até a rua Barão de Itapetininga. Nosso próximo destino era a Livraria Francesa — parada obrigatória para os amantes da “nona arte”, os quadrinhos. Muita literatura e o melhor da bandes dessinée francesa. Meus preferidos estavam nas prateleiras: Wolinski, Reiser, Vuillemin, Charlie Hebdo, L’echo des Savannes…

S’il vous plaît monsieur. Donnezmoi un, deux, trois, quatre. Pronto. O dinheiro economizado no sushi evaporou ali em minutos. Mas, para mim e para o Leandro, cultura nunca era demais.

No dia seguinte, voltamos ao centro, desta vez para conhecer as Grandes Galerias perto da Praça da República. Aproveitei para incrementar minha coleção de LPs e comprar umas camisetas com estampas de rock. O negócio era entrar no clima underground da metropole. Depois de subir a avenida da Consolação e entrar na Paulista, fomos almoçar no restaurante do Masp. Era um pouquinho mais caro que o bandejão da USP, mas a vista e a atmosfera artística valiam a pena.

Um dos pontos altos dessa viagem foi a peça Ubu Rei, com o Teatro do Ornitorrinco.

A gente não podia perder porque era uma das atrações paulistanas mais comentadas no momento. E não era exagero. O espetáculo foi de tirar o fôlego. Diferente de tudo o que eu havia visto em teatro até aquele momento. Estar ali sob aquelas luzes era como estar no paraíso. Eu e o Leandro estávamos tão perto que parecíamos estar no palco junto com os atores. A peça tinha seus momentos interativos, me empolguei e resolvi fazer uma piadinha com o Cacá Rosset. Ele imediatamente reconheceu meu sotaque, me encarou nos olhos e mandou “parece que tem na plateia um gaúcho de Pelotas!”

O público veio abaixo e eu morri de vergonha. Uma voz sussurrou no meu ouvido “em dez anos você será colega desse ator, o José Rubens Chachá, na redação do TV ColOsso!”. É claro que não acreditei…

Era início dos 80. São Paulo transmitia leveza naquela época. Em pouco tempo perdemos o medo de andar nas ruas durante o dia e à noite. Era tão tranquilo quanto passear em Porto Alegre. Como nosso orçamento era modesto, nem sonhávamos em pegar táxi. A gente usava ônibus e metrô. E caminhávamos muito. Quilômetros. Principalmente à noite, quando não havia mais transporte público.

Lembro que, em uma madrugada, voltando de uma balada, avistamos alguém vindo na nossa direção. Ficamos com medo e até pensamos em atravessar a rua. Só que a pessoa atravessou antes da gente. Provavelmente ela também estava com medo da gente.

Normal, nosso visual era meio “suspeito”: gorro, capotes preto e botas.

São Paulo transmitia leveza e, de verdade, era leve. Certa vez, na saída de uma sessão da meia—noite no cine Belas Artes, conhecemos um diretor de teatro no foyer e engrenamos um papo. Saímos caminhando e continuamos conversando pela Paulista. Sentamos na portaria de um prédio e o papo durou horas. Conversamos sobre literatura, contracultura, beatniks, cinema e afins. Como o Leandro tinha mais informação do que eu, foi o protagonista da conversa com o cara. Eu era um mero ouvinte. Um ouvinte escutando tudo aquilo deliciosamente. De vez em quando eu tomava coragem e falava alguma merda para quebrar o gelo. São Paulo surpreendia a gente em todos os momentos. Não tinha espaço para decepções.

Numa outra noite, entramos em um buraco no Bixiga chamado Via Berlim. Era um lugar de punk radical e eu fiquei bem na minha, temeroso de levar uns sopapos de alguém da tribo.

Assistimos ao Ratos de Porão. Largado em um sofá, estava o Arrigo Barnabé, também assistindo ao show. Para a nossa sorte, ninguém estranhou a dupla gaúcha infiltrada.

Depois do show fomos ao boteco do lado para tomar uma cerveja e relaxar antes de ir para a casa de estudante. De repente, fomos abordados por ninguém menos que o escritor Plínio Marcos, de macacão e havaianas, vendendo seus livros de mesa em mesa. São Paulo é bom porque a gente sabe onde encontrar os nossos heróis, disse o Leandro.

Mais uma noite chega e o ator Olair Cohan, um amigo querido, nos levou ao Madame Satã. Na entrada fomos recepcionados por um negro de dois metros de altura – e de largura – vestindo uma camiseta na qual se lia “fuck you”. Eram boas—vindas no melhor estilo underground paulistano. Em meio à fumaça densa que tomava o lugar, avistei alguns cosplays de Bob Cuspe. Mas não vi nenhum sinal do Angeli. Provavelmente estava ocupado fazendo a tira hilariante para o dia seguinte. Na saída, Olair nos apresentou ao Caio Fernando Abreu. Encontros que ficaram marcados para sempre. O acaso em São Paulo era surpreendente…

Eu e Leandro ficamos umas duas semanas em São Paulo nessa primeira “temporada”.

Perdi as contas de quantas exposições, shows, peças e filmes assistimos. Foram duas semanas que valeram por mil. Na época Porto Alegre até que tinha uma boa agenda cultural, principalmente em termos de cinema. Mas não dava para comparar com São Paulo.

O fim da viagem se aproximava e faltava visitar um endereço: Alameda Barão de Limeira, 425. Era onde ficava o prédio da Folha de São Paulo. Eu tinha uma pasta com fotocópias de umas tiras para mostrar a alguém da redação. As meninas da recepção não me deixaram subir, então deixei a pasta com elas. O material era muito ruim, lembro que eram umas tiras com humor meio gauchesco, péssima ideia para levar a um jornal de São Paulo. A papelada deve ter ido direto para o lixo.

Eu e o Leandro atravessamos a rua e pedimos um café na padaria em frente ao prédio. Depois eu viria a saber que essa padaria, à tardinha, era ponto de encontro dos jornalistas e cartunistas dos jornais da empresa Folha da Manhã. Eu tinha esperança de ver o Angeli entrando ou saindo do prédio. Mas o tempo passou passou passou passou e nada. Pagamos a conta e fomos embora. Caminhando, olhando para baixo e acompanhando meus passos pelas calçadas de São Paulo, perguntei ao Leandro:

—Será que algum dia eu vou ser amigo do Angeli?

FIM

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