São Paulo, meu! — Parte 2/3

São Paulo, 1983.

Assim que chegamos no bairro de Pinheiros, eu e Leandro deixamos as malas na Casa de Estudante de Medicina da USP, na rua Teodoro Sampaio, ao lado do Hospital das Clínicas. Aquela seria nossa morada durante duas semanas. Eu me sentia como um peixe fora d’água porque no lugar só havia orientais. A impressão que eu tinha era que só eles conseguiam passar em Medicina, conhecido por ser a prova mais disputada de todas do vestibular. Os japoneses faziam jus à fama de serem inteligentes. Apesar de não tirarem os olhos dos livros, todos foram muito atenciosos.

Estávamos mortos de fome ao chegar e um dos residentes nos levou ao trailer de lanches que ficava ao lado do necrotério, apelidado de “Necrodog”. Nham! O cheeseburger do necrodog era bom demais.

Logo descobrimos ao lado o bandejão da USP. Ótima opção de comida boa e barata. Enquanto almoçávamos, conferíamos o roteiro cultural no jornal Folha de São Paulo. Depois de ver a seção de tiras, claro. Na época, Angeli, Glauco e Laerte estavam bombando e ler essas piadas no território deles tinha um sabor especial. Com sorte eu iria topar com algum deles pelas ruas da cidade. Cada vez que olhava a seção de quadrinhos, pensava: será que um dia vai ter espaço para a minha tirinha aqui? Para isso vou ter que treinar muito para chegar ao nível dos mestres.

Folheando o roteiro nos deparamos com um interminável cardápio cultural: shows, teatro, exposições, palestras, cinema… Páginas e mais páginas e mais páginas ainda. São Paulo era nossa Disneylândia.

À noite, nos aventuramos um pouco mais, descemos a Teodoro Sampaio e entramos em um lugar escuro com música. Estava rolando um show do Itamar Assumpção. Era o teatro Lira Paulistana, um templo da contracultura da época. Um espaço pequeno e intimista. Show inesquecível. E foi pura casualidade a gente ter encontrado o lugar. Ah, nada substitui o acaso…

Na manhã seguinte, caminhamos pela Doutor Arnaldo em direção à avenida Paulista. Passamos pelo Hospital das Clínicas, pelos diversos viadutos e pracinhas, atravessamos a Consolação por baixo da terra, pelo túnel de pedestres, que unia o Bar Riviera e o Cinema Belas Artes, subimos as escadas e demos de cara com a avenida Paulista. Aquela primeira visão da avenida mais importante de São Paulo — e do Brasil, por que não? — me marcou para sempre. Cheguei a perder o fôlego. Eu achei tão lindo aquele cenário urbano e imponente. Naquele momento agradeci ao Leandro por ter me convencido a fazer aquela viagem. Na hora lembrei de uma frase: “a beleza do Rio de Janeiro está no que Deus criou e a beleza de São Paulo está no que o homem construiu”.

“Quando cruzei a Paulista e a Consolação alguma coisa aconteceu no meu coração”, parafraseando aquele baiano. Flanamos pela Paulista caminhando por suas calçadas largas e o cenário passava em câmera lenta: bancas de revistas — uma vez me disseram que nelas se vende mais da metade das revistas e livros do Brasil, multidão indo e vindo, automóveis, fila de arranha—céus. De repente, avistamos o Masp e seu vão livre. Paramos no Mirante 9 de julho para observar a vista. Dali de cima deu para ver que São Paulo era um organismo vivo. As avenidas eram as artérias e o fluxo de automóveis, o sangue correndo. São Paulo e suas artérias. A metrópole vive e não pode parar.

Atravessamos a avenida e entramos no parque Trianon. É incrível como aquela vegetação remanescente da Mata Atlântica funcionava como um gigante ar condicionado. A temperatura baixava de súbito. São Paulo deveria ter pelo menos um parque como este em cada bairro. Fiquei imaginando como seria a região antes da construção da metrópole e urbanização. Os índios sendo expulsos e escravizados pelos Bandeirantes.

Continuamos a caminhada pela Paulista e demos uma parada para tomar um suco no “O Engenheiro que Virou Suco”, em alusão ao filme “O Homem que Virou Suco”, de João Batista de Andrade.

A linha verde de metrô ainda não existia, então fomos caminhando da Consolação até a estação Paraíso. Hora de virar tatu. Desce escada. Caminha. Catraca. Desce desce desce escada. Caminha caminha caminha. Cuidado com o vão. Piiiiiiiiiii! Fecham as portas. E lá vai nossa Apolo 15 na velocidade da luz. Vvvvvvvvuuuuuuuuuum! Estação Vergueiro, diz a voz que nos transporta. Com o “r” carregado. Ah, quero morar no vagão deste trem! Caminha caminha caminha. Sobe sobe sobe escada. Catraca. Sobe escada. Céu azul. Centro Cultural São Paulo! Uau, São Paulo é perfeita! Só tem lugar bacana nesta cidade!

São Paulo devia ter o certificado ISO 9001. No prédio nos deparamos com uma rapaziada lendo sentada no chão de carpete, jogando conversa fora. Pausa para descansar e dar mais uma olhada no jornal. Aproveitamos para comprar entradas para um show do Língua de Trapo naquela noite no teatro do CCSP. Diziam que era imperdível. Em uma das músicas, Laert Sarrumor encarnava o Bob Cuspe e cuspia na plateia! A galera ia ao delírio!

Uma estação depois e mais um espetáculo: o bairro da Liberdade! Ares de Tóquio, supermercados cheios de produtos japoneses e suas maravilhosas embalagens. Orientais por todos os lados e um restaurante ao lado do outro. Nunca havia provado comida japonesa. Entramos em um e o sushiman cortava algo. Perguntei o que era e ele me respondeu em português precário: Esso é pexe cru. Quem no come, no adianta viver.
Putaquipariu! Que lição dão os japoneses. Por isso são o que são. Reconstroem seu país depois de enormes catástrofes: guerras, bombas atômicas, terremotos, maremotos e furacões. Um país tão pequeno e tão poderoso. Por isso que conseguem passar até em Medicina na USP! Como eu estava com grana curta acabei não comendo o tal do peixe cru, mas, mesmo assim “adiantou” viver porque estávamos em… São Paulo. E São Paulo, a Disneylândia dos adultos, nunca decepcionava.

Continua.

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