São Paulo, meu! — Parte 1/3

Porto Alegre, 1983.

Aos 18 anos eu ainda não havia saído do Rio Grande do Sul. Nem ao menos para conhecer Santa Catarina. Minha viagem mais longa tinha sido para Itaqui na fronteira com a Argentina.

Cheguei a cruzar o rio Uruguai em busca de gasolina barata no país hermano e voltei em seguida. Essa poderia ser catalogada como uma viagem internacional se não fosse tão breve e tosca, além do detalhe de que todos do lado argentino também falavam português. Aí não teve graça nenhuma.

Leandro, meu melhor amigo e colega de faculdade, um dia resolveu me sacudir. Ele tinha um prazer sádico de me tirar da zona de conforto. Não que eu fosse acomodado. Ao contrário, gostava sempre de experimentar coisas novas. Mas às vezes eu queria ficar na minha. E o principal: eu detestava que decidissem coisas por mim.

— Vamos pra São Paulo? — disparou Leandro, assim, à queima roupa.

Era uma pergunta sem sentido para mim. Nunca havia conhecido alguém que tivesse viajado para lá. A imagem que eu tinha de São Paulo era a pior de todas: uma selva de pedra envolta por uma redoma contaminada por altas quantidades de gás carbônico e outros poluentes letais. Acho que eu confundia São Paulo com aquelas reportagens de TV sobre Cubatão. Para mim ninguém ia para São Paulo se não fosse obrigado a isso. As pessoas normais costumavam viajar para lugares mais aprazíveis como o Nordeste, Buenos Aires, Nova Iorque, Europa, Índia, Caribe…

— Por que São Paulo, Leandro? O que tem de bom nesse lugar? Você não deve estar batendo bem, lá só tem engarrafamentos e poluição. Dizem que não dá para enxergar um palmo além do nariz. Vamos pegar alguma doença grave nas vias respiratórias ou até mesmo um câncer sem nunca ter fumado, saca? — desconcertado, argumentei sério, porque eu achava tudo isso mesmo…

— Adão, você anda vendo muito telejornal.

— Leandro, se vamos viajar, que tal o Rio de Janeiro? Pão de Açúcar, Ipanema, água de coco, mar azul, caipirinha, biquínis…

— Adão, o Rio já era. Faz uma década que está murchando. Tudo acontece em São Paulo. Vamos! E tem que ser já — sentenciou seco.

Sou influenciável e Leandro venceu em poucos minutos. E tinha razão. A “maior cidade do interior do mundo”, como dizia maliciosamente Millôr Fernandes, estava em ebulição: movimento punk, Bienal de Arte, Masp, o CCSP, o Lira Paulistana, o teatro do grupo Ornitorrinco com a peça “Ubu Rei”, a trupe Língua de Trapo, Folha de São Paulo e seu caderno “Ilustrada”, Pepe Escobar, Os Mulheres Negras, Premê, Ira!, Cólera, Ratos de Porão, Titãs, Inocentes, Mercenárias, Fellini, Roberto Piva, Lina Bo Bardi, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Patife Band, Madame Satã, Mostra Internacional de Cinema, Antônio Bivar, os grafiteiros do Tupinãodá, Patricio Bisso, Circo Editorial, Angeli, Laerte, Geraldão, Chiclete com Banana… A lista poderia ocupar umas dez páginas mas é melhor parar por aqui. Será que eu e Leandro conseguiríamos ver e viver tudo isso em duas semanas?

Juntamos alguns trocados, sem problema nenhum, não ligávamos para luxos, e uma mochila pequena e logo embarcamos na rodoviária de Porto Alegre. Tínhamos dezoito horas de viagem pela frente mas eu não estava nem um pouco chateado. O que seria roubada para muitos, para nós era uma aventura deliciosa. Com a nossa ansiedade, as horas iam voar, todo esse tempo passaria em minutos. Tudo me emocionava. Por ser provinciano e deslumbrado, uma prosaica viagem de ônibus entre Porto Alegre e São Paulo foi tão surpreendente quanto voar de Concorde de Paris à Nova Iorque. Até a mudança na vegetação me deixava alucinado. Agitado com tanta novidade, eu narrava a paisagem enquadrada pela janela do ônibus:

— Nossa, uma árvore catarinense! Olha que praia linda! A água é azul, nada a ver com as praias gaúchas! Uma baía! Outra baía! Ilhas à vista! Uma rocha! Como pode isso? Rocha perto da água do mar? Não combina. Parece um chiste divino. Não tem essas coisas lá no Rio Grande, tchê! Só areia e água marrom. Agora entendi porque os bacanas vêm veranear em Santa Catarina. Isso sim é que é praia. Uau, entramos no Paraná! Uma araucária! O ícone do estado! Nem viajamos tanto e a natureza é tão diferente, vai mudando gradativamente conforme os quilômetros passam! Parece que foi tudo estudado. Até a grama é outra!

Pausa para esticar as pernas na rodoviária de Curitiba:

— Caramba, como o pessoal fala diferente aqui. Veja: formigas paranaenses! São de outra espécie, claro, olha o tamanho! Olá, formigas do Paraná, tudo belezinha? Como é viver aqui?

Eu desfilava minhas observações uma atrás da outra, olhando para todos os lados, querendo entender tudo, viver tudo, absorver tudo. Estava sedento. E faminto…

Mais árvores e arbustos. Fronteira. Placa indica que deixamos o Paraná para trás e entramos no estado de São Paulo. O último trecho. Me emocionei mais ainda. Mais árvores e arbustos, só que agora eram árvores e arbustos paulistas! Mais diferentes ainda. Com um quê de tropical. São Paulo estava cada vez mais próxima e o entusiasmo que eu sentia era tremendo.

Penúltima parada em uma lanchonete no município de Registro a menos de 200 quilômetros da capital do Brasil. Isso mesmo, São Paulo para mim e para o Leandro era a cidade mais importante do Brasil, portanto a capital. Sem discussão. Descemos para mijar e, mortos de fome, fomos à lanchonete. Ali fui apresentado ao misto quente paulista. Goleada na torrada gaúcha à base de margarina e presuntada de quinta. A torrada, ou misto quente de São Paulo é uma refeição. Muito queijo. Muito presunto. E presunto de verdade. Coxinha de frango com recheio de catupiry? Que porra é essa de catupiry? Putz, mas é muito bom isso, derrete na boca! Eu começava também a ser apresentado às iguarias mineiras. No Rio Grande do Sul não tinha nem cheiro disso. Minha vida se divide em “antes do lanche paulista” e “depois do lanche paulista”. E olha que eu não estou exagerando. Nem tínhamos chegado à São Paulo e a viagem já estava valendo a pena.

Embarcamos novamente e três horas depois chegamos em São Paulo. A chegada foi impactante. Comparando a cidade com Porto Alegre, São Paulo seria o pai e Porto Alegre o filho, que parecia um povoado. Minúsculo. Já São Paulo era gigante e interminável. Arranha—céus colados uns nos outros num jogo de empurra—empurra. Como se tivessem brotado tal qual erva daninha. Eram tantos que não dava para contar.

Em primeiro plano, em segundo, em terceiro, nas colinas e baixadas: só arranha—céus. Uma leve capa cinza encobria a cidade. Mas não me surpreendeu, nem fazia eu tossir sem parar. Dava para suportar e o fog paulistano era até charmoso.

Vendo aquele mar de prédios, eu e Leandro nos olhamos. Ele parecia ter os mesmos pensamentos, as mesmas indagações que eu. Será que nossa aventura vai dar certo? Como é que a gente vai se situar dentro deste monstro de concreto? E se a gente se perder? E se não conseguirmos encontrar a casa de estudante? E se a gente pegar o ônibus errado e for parar na periferia? E se a gente não conseguir voltar? E se? E se? E se?

Animados, mas também cheios de dúvidas, passamos pela Marginal até chegar no ponto final, a rodoviária do Tietê. Desembarcamos com as mochilas a tiracolo e subimos uma rampa que dava num enorme salão central. Então nos deparamos com um formigueiro de pessoas carregando malas e sacolas de um lado para o outro. A rodoviária era gigante. Dava umas dez rodoviárias de Porto Alegre.

Aquela bagunça, aquele caos, gritaria, desordenada ordem, eram a síntese do Brasil. Muitos nordestinos. Eles quase não existem no Rio Grande do Sul. Sotaques diferentes e cheiros exóticos. Achei até que tinha visto uma cabra comendo um copo plástico mas devia ter sido uma alucinação causada pela euforia da viagem.

Por que pronunciam o “r” como norte—americano? O que fazem esses japoneses aqui? Estão perdidos ou foi erro de casting? Isto não passa de um sonho. Me belisquem, por favor!

Mas o melhor estava por vir: o metrô. Nunca tinha visto um. A primeira vez a gente nunca esquece, já dizia aquele comercial do Olivetto. Escadarias intermináveis em direção ao centro da Terra. Mantenha—se à esquerda. O ritmo mudou. Agora tudo seria frenético. Nos transformamos em tatus. Os trilhos. Não ultrapassar a linha amarela. Mind the gap! Entramos no vagão. Todo mundo com cara de tédio. Mas eu estava maravilhado, me sentia na Apolo 15, prestes a invadir o espaço e pousar na Lua. Piiiiiiii! Fecham as portas. O troço era mais veloz que a luz, flutuava, eu tinha certeza disso. Estação Paraíso. A porta abriu. Cuidado com o vão. Caminha caminha caminha, sobe sobe sobe escada, caminha caminha. Avenida Paulista, meu! Que luz linda! Céu azul. Onde foi parar toda a poluição? Mentirosos! O ar é igual ao de Porto Alegre. Pegamos o ônibus para Pinheiros — ainda não existia a linha de metrô da Paulista. Eu me contorcia dentro do coletivo para tentar ver o topo dos arranha—céus do centro econômico do país. Leandro me cutucou e me chamou a atenção para um prédio alucinante. Era o Masp, da arquiteta Lina Bo Bardi. O vão de 70 metros era inacreditável, pairava no ar. Uma obra de arte a céu aberto. Deu vontade de saltar do ônibus direto para o interior do prédio e admirar todas as pinturas que estavam lá. Entramos em um túnel onde deu para ver algumas pichações de alguns artistas famosos. São Paulo era um museu aberto nos anos 80.

Estávamos a poucos minutos do nosso destino, a Casa de Estudante de Medicina da USP, localizada ao lado do Hospital das Clínicas. Lá dividiríamos um quarto com alguns japoneses e japonesas. Seríamos os únicos não orientais do pedaço. Descemos no primeiro ponto da Cardeal Arcoverde, demos a volta na quadra e quando chegamos na Teodoro Sampaio, nosso endereço temporário, São Paulo mostrou sua cara: a banda Os Inocentes descia a rua em nossa direção. Vestiam roupas pretas, coturnos pesados e na cabeça uns moicanos. Ao passar por eles, juro que ouvi um diálogo telepático: “não se preocupem, não vamos dar uma surra em vocês. São Paulo é como a gente, à primeira vista parecemos antipáticos, mas à medida que vocês nos conhecerem, vão ver que somos doces. Bem—vindos!”

Naquele momento eu e Leandro nos entreolhamos e pensamos: “ainda vamos morar aqui!”.

Continua.

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