Rê Bordosa, a primeira vez

Foi num final de tarde frio e úmido na Porto Alegre de 1985. Eu estava no ponto da rua Ramiro Barcelos, esperando o ônibus, quando avistei na banca de jornais o primeiro gibi de tiras da Rê Bordosa. Depois de comprar a revista, embarquei – no ônibus e nas histórias. Ao folhear, cada página me atingia como um soco no estômago. Que desenho do caralho! Que piadas bem sacadas! Nunca vi nada igual! Puta merda! Era isso que eu queria fazer! Por que eu não pensei nisso antes?
 
Minhas sensações eram, ao mesmo tempo, de prazer e dor. Era um prazer ver um trabalho com uma pegada tão moderna e original num momento em que a maioria do quadrinho brasileiro tinha um discurso engajado e tratava de temas políticos. O quadrinho do Angeli era um respiro no meio de tanta imobilidade.
 
Por outro lado, ver algo que era exatamente o que eu queria fazer doeu profundamente, como uma adaga no meu peito. Alguém já tinha feito antes o que meu cérebro planejava fazer, mas necessitava de mais tempo para executar, pensei. Faminto, devorei o gibi durante o trajeto até chegar em casa. Fiquei zonzo. Em seguida, devorei mais uma, duas, três e infinitas vezes.
 
Ainda hoje me pego folheando esse exemplar de uma das melhores personagens da história do gibi brasileiro. De um segundo para o outro, como mágica ruim, meu trabalho ficou ultrapassado! Era hora de pegar outra estrada, seguir uma nova rota.
 
Aí veio a Circo Editorial, do Toninho Mendes, que entrou com seu tsunami de revistas: Chiclete com Banana, Circo, Piratas do Tietê, Níquel Náusea, Geraldão. Cravava-se o AC-DC do quadrinho brasileiro: antes da Circo e depois da Circo. A repercussão foi grande: “Quem disse que não existe literatura de São Paulo? Os quadrinhos são a literatura de São Paulo”, declarou Verissimo; “Naquela época todo desenhista tinha o sonho da revista própria”, comentou espirituosamente Luiz Gê. Até eu tive a minha, a Big Bang Bang, uns oito anos depois. E as revistas continuaram a ser editadas durante anos, com um fôlego inacreditável.

Naquela tarde em Porto Alegre, faltavam uns cinco anos para eu viajar para São Paulo e conhecer o Angeli pessoalmente, além de outros ídolos, como Laerte e Glauco. Algo que, era impensável para mim, um sonho inatingível.

Lembro que levei uma pilha de revistas da Circo para Paris em 1990. Mostrei ao Gilbert Shelton e outros desenhistas de lá. Todos ficaram impressionados com a riqueza e a criatividade de nossa produção. “Sempre soubemos que os brasileiros eram muito criativos, mas isso é demais”, um deles comentou. Nem eles tinham tantos títulos. Acabei dando de presente ao Shelton toda a coleção e isso foi mais do que suficiente para começar uma amizade.

Voltando a 1985, naquela época eu estava enfurnado em uma agência de propaganda de Porto Alegre, atuando como diretor de arte. Nesse papel eu tinha consciência de que era muito ruim. Um verdadeiro canastrão. Um profissional medíocre com uma carreira idem, que não parecia ter chances de decolar, como um avião mal projetado.
Um dia, meu chefe gritou da sala dele:

— Adão, telefone pra você!

— Quem é? — perguntei.

— Toninho Mendes!

Puta que pariu! Devo ter saltado cadeiras e mesas para atender o telefone.

— Alô!

— Aqui é o Toninho Mendes, da Circo. Eu e o Angeli somos vidrados no seu trabalho. Queremos publicar uns cartuns seus na Chiclete com Banana e na Circo.

Eu já tinha tido uns cinco ataques cardíacos até que a voz do outro lado da linha começou a gargalhar. Então reconheci a voz do meu chefe me passando um trote.

Alguns meses depois, eu abandonei a publicidade. E um cartum meu, sobre sadomasoquismo, foi publicado na seção de cartas da Chiclete com Banana. Putz, como fiquei feliz! Eu andava com aquele exemplar na mochila e mostrava orgulhoso para todo mundo. Considerei um grande feito na época.
Uns oito anos após essa primeira publicação minha, quando eu e o Angeli já éramos amigos, ele me contou que esse cartum quase entrou como página inteira na revista. Ele e o Toninho ficaram em dúvida, então o cartum acabou caindo para a seção de cartas.
 Acredito que, se tivesse saído na página inteira, eu teria tido um piripaque dos grandes.

---