Correio Elegante

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São Paulo, meu! — Parte 1/3

Porto Alegre, 1983.

Aos 18 anos eu ainda não havia saído do Rio Grande do Sul. Nem ao menos para conhecer Santa Catarina. Minha viagem mais longa tinha sido para Itaqui na fronteira com a Argentina.

Cheguei a cruzar o rio Uruguai em busca de gasolina barata no país hermano e voltei em seguida. Essa poderia ser catalogada como uma viagem internacional se não fosse tão breve e tosca, além do detalhe de que todos do lado argentino também falavam português. Aí não teve graça nenhuma.

Leandro, meu melhor amigo e colega de faculdade, um dia resolveu me sacudir. Ele tinha um prazer sádico de me tirar da zona de conforto. Não que eu fosse acomodado. Ao contrário, gostava sempre de experimentar coisas novas. Mas às vezes eu queria ficar na minha. E o principal: eu detestava que decidissem coisas por mim.

— Vamos pra São Paulo? — disparou Leandro, assim, à queima roupa.

Era uma pergunta sem sentido para mim. Nunca havia conhecido alguém que tivesse viajado para lá. A imagem que eu tinha de São Paulo era a pior de todas: uma selva de pedra envolta por uma redoma contaminada por altas quantidades de gás carbônico e outros poluentes letais. Acho que eu confundia São Paulo com aquelas reportagens de TV sobre Cubatão. Para mim ninguém ia para São Paulo se não fosse obrigado a isso. As pessoas normais costumavam viajar para lugares mais aprazíveis como o Nordeste, Buenos Aires, Nova Iorque, Europa, Índia, Caribe…

— Por que São Paulo, Leandro? O que tem de bom nesse lugar? Você não deve estar batendo bem, lá só tem engarrafamentos e poluição. Dizem que não dá para enxergar um palmo além do nariz. Vamos pegar alguma doença grave nas vias respiratórias ou até mesmo um câncer sem nunca ter fumado, saca? — desconcertado, argumentei sério, porque eu achava tudo isso mesmo…

— Adão, você anda vendo muito telejornal.

— Leandro, se vamos viajar, que tal o Rio de Janeiro? Pão de Açúcar, Ipanema, água de coco, mar azul, caipirinha, biquínis…

— Adão, o Rio já era. Faz uma década que está murchando. Tudo acontece em São Paulo. Vamos! E tem que ser já — sentenciou seco.

Sou influenciável e Leandro venceu em poucos minutos. E tinha razão. A “maior cidade do interior do mundo”, como dizia maliciosamente Millôr Fernandes, estava em ebulição: movimento punk, Bienal de Arte, Masp, o CCSP, o Lira Paulistana, o teatro do grupo Ornitorrinco com a peça “Ubu Rei”, a trupe Língua de Trapo, Folha de São Paulo e seu caderno “Ilustrada”, Pepe Escobar, Os Mulheres Negras, Premê, Ira!, Cólera, Ratos de Porão, Titãs, Inocentes, Mercenárias, Fellini, Roberto Piva, Lina Bo Bardi, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Patife Band, Madame Satã, Mostra Internacional de Cinema, Antônio Bivar, os grafiteiros do Tupinãodá, Patricio Bisso, Circo Editorial, Angeli, Laerte, Geraldão, Chiclete com Banana… A lista poderia ocupar umas dez páginas mas é melhor parar por aqui. Será que eu e Leandro conseguiríamos ver e viver tudo isso em duas semanas?

Juntamos alguns trocados, sem problema nenhum, não ligávamos para luxos, e uma mochila pequena e logo embarcamos na rodoviária de Porto Alegre. Tínhamos dezoito horas de viagem pela frente mas eu não estava nem um pouco chateado. O que seria roubada para muitos, para nós era uma aventura deliciosa. Com a nossa ansiedade, as horas iam voar, todo esse tempo passaria em minutos. Tudo me emocionava. Por ser provinciano e deslumbrado, uma prosaica viagem de ônibus entre Porto Alegre e São Paulo foi tão surpreendente quanto voar de Concorde de Paris à Nova Iorque. Até a mudança na vegetação me deixava alucinado. Agitado com tanta novidade, eu narrava a paisagem enquadrada pela janela do ônibus:

— Nossa, uma árvore catarinense! Olha que praia linda! A água é azul, nada a ver com as praias gaúchas! Uma baía! Outra baía! Ilhas à vista! Uma rocha! Como pode isso? Rocha perto da água do mar? Não combina. Parece um chiste divino. Não tem essas coisas lá no Rio Grande, tchê! Só areia e água marrom. Agora entendi porque os bacanas vêm veranear em Santa Catarina. Isso sim é que é praia. Uau, entramos no Paraná! Uma araucária! O ícone do estado! Nem viajamos tanto e a natureza é tão diferente, vai mudando gradativamente conforme os quilômetros passam! Parece que foi tudo estudado. Até a grama é outra!

Pausa para esticar as pernas na rodoviária de Curitiba:

— Caramba, como o pessoal fala diferente aqui. Veja: formigas paranaenses! São de outra espécie, claro, olha o tamanho! Olá, formigas do Paraná, tudo belezinha? Como é viver aqui?

Eu desfilava minhas observações uma atrás da outra, olhando para todos os lados, querendo entender tudo, viver tudo, absorver tudo. Estava sedento. E faminto…

Mais árvores e arbustos. Fronteira. Placa indica que deixamos o Paraná para trás e entramos no estado de São Paulo. O último trecho. Me emocionei mais ainda. Mais árvores e arbustos, só que agora eram árvores e arbustos paulistas! Mais diferentes ainda. Com um quê de tropical. São Paulo estava cada vez mais próxima e o entusiasmo que eu sentia era tremendo.

Penúltima parada em uma lanchonete no município de Registro a menos de 200 quilômetros da capital do Brasil. Isso mesmo, São Paulo para mim e para o Leandro era a cidade mais importante do Brasil, portanto a capital. Sem discussão. Descemos para mijar e, mortos de fome, fomos à lanchonete. Ali fui apresentado ao misto quente paulista. Goleada na torrada gaúcha à base de margarina e presuntada de quinta. A torrada, ou misto quente de São Paulo é uma refeição. Muito queijo. Muito presunto. E presunto de verdade. Coxinha de frango com recheio de catupiry? Que porra é essa de catupiry? Putz, mas é muito bom isso, derrete na boca! Eu começava também a ser apresentado às iguarias mineiras. No Rio Grande do Sul não tinha nem cheiro disso. Minha vida se divide em “antes do lanche paulista” e “depois do lanche paulista”. E olha que eu não estou exagerando. Nem tínhamos chegado à São Paulo e a viagem já estava valendo a pena.

Embarcamos novamente e três horas depois chegamos em São Paulo. A chegada foi impactante. Comparando a cidade com Porto Alegre, São Paulo seria o pai e Porto Alegre o filho, que parecia um povoado. Minúsculo. Já São Paulo era gigante e interminável. Arranha—céus colados uns nos outros num jogo de empurra—empurra. Como se tivessem brotado tal qual erva daninha. Eram tantos que não dava para contar.

Em primeiro plano, em segundo, em terceiro, nas colinas e baixadas: só arranha—céus. Uma leve capa cinza encobria a cidade. Mas não me surpreendeu, nem fazia eu tossir sem parar. Dava para suportar e o fog paulistano era até charmoso.

Vendo aquele mar de prédios, eu e Leandro nos olhamos. Ele parecia ter os mesmos pensamentos, as mesmas indagações que eu. Será que nossa aventura vai dar certo? Como é que a gente vai se situar dentro deste monstro de concreto? E se a gente se perder? E se não conseguirmos encontrar a casa de estudante? E se a gente pegar o ônibus errado e for parar na periferia? E se a gente não conseguir voltar? E se? E se? E se?

Animados, mas também cheios de dúvidas, passamos pela Marginal até chegar no ponto final, a rodoviária do Tietê. Desembarcamos com as mochilas a tiracolo e subimos uma rampa que dava num enorme salão central. Então nos deparamos com um formigueiro de pessoas carregando malas e sacolas de um lado para o outro. A rodoviária era gigante. Dava umas dez rodoviárias de Porto Alegre.

Aquela bagunça, aquele caos, gritaria, desordenada ordem, eram a síntese do Brasil. Muitos nordestinos. Eles quase não existem no Rio Grande do Sul. Sotaques diferentes e cheiros exóticos. Achei até que tinha visto uma cabra comendo um copo plástico mas devia ter sido uma alucinação causada pela euforia da viagem.

Por que pronunciam o “r” como norte—americano? O que fazem esses japoneses aqui? Estão perdidos ou foi erro de casting? Isto não passa de um sonho. Me belisquem, por favor!

Mas o melhor estava por vir: o metrô. Nunca tinha visto um. A primeira vez a gente nunca esquece, já dizia aquele comercial do Olivetto. Escadarias intermináveis em direção ao centro da Terra. Mantenha—se à esquerda. O ritmo mudou. Agora tudo seria frenético. Nos transformamos em tatus. Os trilhos. Não ultrapassar a linha amarela. Mind the gap! Entramos no vagão. Todo mundo com cara de tédio. Mas eu estava maravilhado, me sentia na Apolo 15, prestes a invadir o espaço e pousar na Lua. Piiiiiiii! Fecham as portas. O troço era mais veloz que a luz, flutuava, eu tinha certeza disso. Estação Paraíso. A porta abriu. Cuidado com o vão. Caminha caminha caminha, sobe sobe sobe escada, caminha caminha. Avenida Paulista, meu! Que luz linda! Céu azul. Onde foi parar toda a poluição? Mentirosos! O ar é igual ao de Porto Alegre. Pegamos o ônibus para Pinheiros — ainda não existia a linha de metrô da Paulista. Eu me contorcia dentro do coletivo para tentar ver o topo dos arranha—céus do centro econômico do país. Leandro me cutucou e me chamou a atenção para um prédio alucinante. Era o Masp, da arquiteta Lina Bo Bardi. O vão de 70 metros era inacreditável, pairava no ar. Uma obra de arte a céu aberto. Deu vontade de saltar do ônibus direto para o interior do prédio e admirar todas as pinturas que estavam lá. Entramos em um túnel onde deu para ver algumas pichações de alguns artistas famosos. São Paulo era um museu aberto nos anos 80.

Estávamos a poucos minutos do nosso destino, a Casa de Estudante de Medicina da USP, localizada ao lado do Hospital das Clínicas. Lá dividiríamos um quarto com alguns japoneses e japonesas. Seríamos os únicos não orientais do pedaço. Descemos no primeiro ponto da Cardeal Arcoverde, demos a volta na quadra e quando chegamos na Teodoro Sampaio, nosso endereço temporário, São Paulo mostrou sua cara: a banda Os Inocentes descia a rua em nossa direção. Vestiam roupas pretas, coturnos pesados e na cabeça uns moicanos. Ao passar por eles, juro que ouvi um diálogo telepático: “não se preocupem, não vamos dar uma surra em vocês. São Paulo é como a gente, à primeira vista parecemos antipáticos, mas à medida que vocês nos conhecerem, vão ver que somos doces. Bem—vindos!”

Naquele momento eu e Leandro nos entreolhamos e pensamos: “ainda vamos morar aqui!”.

Continua.

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São Paulo, meu! — Parte 2/3

São Paulo, 1983.

Assim que chegamos no bairro de Pinheiros, eu e Leandro deixamos as malas na Casa de Estudante de Medicina da USP, na rua Teodoro Sampaio, ao lado do Hospital das Clínicas. Aquela seria nossa morada durante duas semanas. Eu me sentia como um peixe fora d’água porque no lugar só havia orientais. A impressão que eu tinha era que só eles conseguiam passar em Medicina, conhecido por ser a prova mais disputada de todas do vestibular. Os japoneses faziam jus à fama de serem inteligentes. Apesar de não tirarem os olhos dos livros, todos foram muito atenciosos.

Estávamos mortos de fome ao chegar e um dos residentes nos levou ao trailer de lanches que ficava ao lado do necrotério, apelidado de “Necrodog”. Nham! O cheeseburger do necrodog era bom demais.

Logo descobrimos ao lado o bandejão da USP. Ótima opção de comida boa e barata. Enquanto almoçávamos, conferíamos o roteiro cultural no jornal Folha de São Paulo. Depois de ver a seção de tiras, claro. Na época, Angeli, Glauco e Laerte estavam bombando e ler essas piadas no território deles tinha um sabor especial. Com sorte eu iria topar com algum deles pelas ruas da cidade. Cada vez que olhava a seção de quadrinhos, pensava: será que um dia vai ter espaço para a minha tirinha aqui? Para isso vou ter que treinar muito para chegar ao nível dos mestres.

Folheando o roteiro nos deparamos com um interminável cardápio cultural: shows, teatro, exposições, palestras, cinema… Páginas e mais páginas e mais páginas ainda. São Paulo era nossa Disneylândia.

À noite, nos aventuramos um pouco mais, descemos a Teodoro Sampaio e entramos em um lugar escuro com música. Estava rolando um show do Itamar Assumpção. Era o teatro Lira Paulistana, um templo da contracultura da época. Um espaço pequeno e intimista. Show inesquecível. E foi pura casualidade a gente ter encontrado o lugar. Ah, nada substitui o acaso…

Na manhã seguinte, caminhamos pela Doutor Arnaldo em direção à avenida Paulista. Passamos pelo Hospital das Clínicas, pelos diversos viadutos e pracinhas, atravessamos a Consolação por baixo da terra, pelo túnel de pedestres, que unia o Bar Riviera e o Cinema Belas Artes, subimos as escadas e demos de cara com a avenida Paulista. Aquela primeira visão da avenida mais importante de São Paulo — e do Brasil, por que não? — me marcou para sempre. Cheguei a perder o fôlego. Eu achei tão lindo aquele cenário urbano e imponente. Naquele momento agradeci ao Leandro por ter me convencido a fazer aquela viagem. Na hora lembrei de uma frase: “a beleza do Rio de Janeiro está no que Deus criou e a beleza de São Paulo está no que o homem construiu”.

“Quando cruzei a Paulista e a Consolação alguma coisa aconteceu no meu coração”, parafraseando aquele baiano. Flanamos pela Paulista caminhando por suas calçadas largas e o cenário passava em câmera lenta: bancas de revistas — uma vez me disseram que nelas se vende mais da metade das revistas e livros do Brasil, multidão indo e vindo, automóveis, fila de arranha—céus. De repente, avistamos o Masp e seu vão livre. Paramos no Mirante 9 de julho para observar a vista. Dali de cima deu para ver que São Paulo era um organismo vivo. As avenidas eram as artérias e o fluxo de automóveis, o sangue correndo. São Paulo e suas artérias. A metrópole vive e não pode parar.

Atravessamos a avenida e entramos no parque Trianon. É incrível como aquela vegetação remanescente da Mata Atlântica funcionava como um gigante ar condicionado. A temperatura baixava de súbito. São Paulo deveria ter pelo menos um parque como este em cada bairro. Fiquei imaginando como seria a região antes da construção da metrópole e urbanização. Os índios sendo expulsos e escravizados pelos Bandeirantes.

Continuamos a caminhada pela Paulista e demos uma parada para tomar um suco no “O Engenheiro que Virou Suco”, em alusão ao filme “O Homem que Virou Suco”, de João Batista de Andrade.

A linha verde de metrô ainda não existia, então fomos caminhando da Consolação até a estação Paraíso. Hora de virar tatu. Desce escada. Caminha. Catraca. Desce desce desce escada. Caminha caminha caminha. Cuidado com o vão. Piiiiiiiiiii! Fecham as portas. E lá vai nossa Apolo 15 na velocidade da luz. Vvvvvvvvuuuuuuuuuum! Estação Vergueiro, diz a voz que nos transporta. Com o “r” carregado. Ah, quero morar no vagão deste trem! Caminha caminha caminha. Sobe sobe sobe escada. Catraca. Sobe escada. Céu azul. Centro Cultural São Paulo! Uau, São Paulo é perfeita! Só tem lugar bacana nesta cidade!

São Paulo devia ter o certificado ISO 9001. No prédio nos deparamos com uma rapaziada lendo sentada no chão de carpete, jogando conversa fora. Pausa para descansar e dar mais uma olhada no jornal. Aproveitamos para comprar entradas para um show do Língua de Trapo naquela noite no teatro do CCSP. Diziam que era imperdível. Em uma das músicas, Laert Sarrumor encarnava o Bob Cuspe e cuspia na plateia! A galera ia ao delírio!

Uma estação depois e mais um espetáculo: o bairro da Liberdade! Ares de Tóquio, supermercados cheios de produtos japoneses e suas maravilhosas embalagens. Orientais por todos os lados e um restaurante ao lado do outro. Nunca havia provado comida japonesa. Entramos em um e o sushiman cortava algo. Perguntei o que era e ele me respondeu em português precário: Esso é pexe cru. Quem no come, no adianta viver.
Putaquipariu! Que lição dão os japoneses. Por isso são o que são. Reconstroem seu país depois de enormes catástrofes: guerras, bombas atômicas, terremotos, maremotos e furacões. Um país tão pequeno e tão poderoso. Por isso que conseguem passar até em Medicina na USP! Como eu estava com grana curta acabei não comendo o tal do peixe cru, mas, mesmo assim “adiantou” viver porque estávamos em… São Paulo. E São Paulo, a Disneylândia dos adultos, nunca decepcionava.

Continua.

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São Paulo, meu! — Parte 3/3

A odisseia seguia… Uma pernada até a Praça da República, no centro, e eu e o Leandro nos deparamos com um formigueiro de gente. Me lembrou imediatamente a rodoviária Tietê. Pessoas indo e vindo, vindo e indo. Executivos de terno e gravata com o olhar tenso. Estudantes batendo papo despreocupados. Casais se pegando. Mendigos, gostosas, larápios, pregadores, cantores, homens—sanduíche anunciando “vendo ouro” e outras bugigangas, toda sorte de malucos.

Caminhamos um pouco até a rua Barão de Itapetininga. Nosso próximo destino era a Livraria Francesa — parada obrigatória para os amantes da “nona arte”, os quadrinhos. Muita literatura e o melhor da bandes dessinée francesa. Meus preferidos estavam nas prateleiras: Wolinski, Reiser, Vuillemin, Charlie Hebdo, L’echo des Savannes…

S’il vous plaît monsieur. Donnezmoi un, deux, trois, quatre. Pronto. O dinheiro economizado no sushi evaporou ali em minutos. Mas, para mim e para o Leandro, cultura nunca era demais.

No dia seguinte, voltamos ao centro, desta vez para conhecer as Grandes Galerias perto da Praça da República. Aproveitei para incrementar minha coleção de LPs e comprar umas camisetas com estampas de rock. O negócio era entrar no clima underground da metropole. Depois de subir a avenida da Consolação e entrar na Paulista, fomos almoçar no restaurante do Masp. Era um pouquinho mais caro que o bandejão da USP, mas a vista e a atmosfera artística valiam a pena.

Um dos pontos altos dessa viagem foi a peça Ubu Rei, com o Teatro do Ornitorrinco.

A gente não podia perder porque era uma das atrações paulistanas mais comentadas no momento. E não era exagero. O espetáculo foi de tirar o fôlego. Diferente de tudo o que eu havia visto em teatro até aquele momento. Estar ali sob aquelas luzes era como estar no paraíso. Eu e o Leandro estávamos tão perto que parecíamos estar no palco junto com os atores. A peça tinha seus momentos interativos, me empolguei e resolvi fazer uma piadinha com o Cacá Rosset. Ele imediatamente reconheceu meu sotaque, me encarou nos olhos e mandou “parece que tem na plateia um gaúcho de Pelotas!”

O público veio abaixo e eu morri de vergonha. Uma voz sussurrou no meu ouvido “em dez anos você será colega desse ator, o José Rubens Chachá, na redação do TV ColOsso!”. É claro que não acreditei…

Era início dos 80. São Paulo transmitia leveza naquela época. Em pouco tempo perdemos o medo de andar nas ruas durante o dia e à noite. Era tão tranquilo quanto passear em Porto Alegre. Como nosso orçamento era modesto, nem sonhávamos em pegar táxi. A gente usava ônibus e metrô. E caminhávamos muito. Quilômetros. Principalmente à noite, quando não havia mais transporte público.

Lembro que, em uma madrugada, voltando de uma balada, avistamos alguém vindo na nossa direção. Ficamos com medo e até pensamos em atravessar a rua. Só que a pessoa atravessou antes da gente. Provavelmente ela também estava com medo da gente.

Normal, nosso visual era meio “suspeito”: gorro, capotes preto e botas.

São Paulo transmitia leveza e, de verdade, era leve. Certa vez, na saída de uma sessão da meia—noite no cine Belas Artes, conhecemos um diretor de teatro no foyer e engrenamos um papo. Saímos caminhando e continuamos conversando pela Paulista. Sentamos na portaria de um prédio e o papo durou horas. Conversamos sobre literatura, contracultura, beatniks, cinema e afins. Como o Leandro tinha mais informação do que eu, foi o protagonista da conversa com o cara. Eu era um mero ouvinte. Um ouvinte escutando tudo aquilo deliciosamente. De vez em quando eu tomava coragem e falava alguma merda para quebrar o gelo. São Paulo surpreendia a gente em todos os momentos. Não tinha espaço para decepções.

Numa outra noite, entramos em um buraco no Bixiga chamado Via Berlim. Era um lugar de punk radical e eu fiquei bem na minha, temeroso de levar uns sopapos de alguém da tribo.

Assistimos ao Ratos de Porão. Largado em um sofá, estava o Arrigo Barnabé, também assistindo ao show. Para a nossa sorte, ninguém estranhou a dupla gaúcha infiltrada.

Depois do show fomos ao boteco do lado para tomar uma cerveja e relaxar antes de ir para a casa de estudante. De repente, fomos abordados por ninguém menos que o escritor Plínio Marcos, de macacão e havaianas, vendendo seus livros de mesa em mesa. São Paulo é bom porque a gente sabe onde encontrar os nossos heróis, disse o Leandro.

Mais uma noite chega e o ator Olair Cohan, um amigo querido, nos levou ao Madame Satã. Na entrada fomos recepcionados por um negro de dois metros de altura – e de largura – vestindo uma camiseta na qual se lia “fuck you”. Eram boas—vindas no melhor estilo underground paulistano. Em meio à fumaça densa que tomava o lugar, avistei alguns cosplays de Bob Cuspe. Mas não vi nenhum sinal do Angeli. Provavelmente estava ocupado fazendo a tira hilariante para o dia seguinte. Na saída, Olair nos apresentou ao Caio Fernando Abreu. Encontros que ficaram marcados para sempre. O acaso em São Paulo era surpreendente…

Eu e Leandro ficamos umas duas semanas em São Paulo nessa primeira “temporada”.

Perdi as contas de quantas exposições, shows, peças e filmes assistimos. Foram duas semanas que valeram por mil. Na época Porto Alegre até que tinha uma boa agenda cultural, principalmente em termos de cinema. Mas não dava para comparar com São Paulo.

O fim da viagem se aproximava e faltava visitar um endereço: Alameda Barão de Limeira, 425. Era onde ficava o prédio da Folha de São Paulo. Eu tinha uma pasta com fotocópias de umas tiras para mostrar a alguém da redação. As meninas da recepção não me deixaram subir, então deixei a pasta com elas. O material era muito ruim, lembro que eram umas tiras com humor meio gauchesco, péssima ideia para levar a um jornal de São Paulo. A papelada deve ter ido direto para o lixo.

Eu e o Leandro atravessamos a rua e pedimos um café na padaria em frente ao prédio. Depois eu viria a saber que essa padaria, à tardinha, era ponto de encontro dos jornalistas e cartunistas dos jornais da empresa Folha da Manhã. Eu tinha esperança de ver o Angeli entrando ou saindo do prédio. Mas o tempo passou passou passou passou e nada. Pagamos a conta e fomos embora. Caminhando, olhando para baixo e acompanhando meus passos pelas calçadas de São Paulo, perguntei ao Leandro:

—Será que algum dia eu vou ser amigo do Angeli?

FIM

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Remar é preciso

Remo foi um dos esportes que pratiquei a sério na adolescência. Pode parecer que esporte não combine muito comigo, mas eu fiz de tudo: futebol, tênis, handebol, basquete, ginástica olímpica, halterofilismo, skate, maratona, natação, surfe e ciclismo.
 
Nas aulas de educação física do segundo grau o professor notou que eu tinha uma boa performance no salto triplo e me incentivou a treinar para competir em um campeonato estadual. Viajei a Porto Alegre para participar do torneio e acabei levando o terceiro lugar. Só que fiquei muito aquém das marcas dos outros dois competidores vencedores. O primeiro lugar era um negro enorme com as pernas da minha altura que deve ter saltado o dobro da distância do meu salto.
 
Eu realmente gostava muito de esporte. Nos fins de semana pegava a bicicleta e fazia sessenta quilômetros no asfalto.

A cidade de Cachoeira do Sul, onde nasci, é lambida por um rio importante, o Jacuí. O rio servia para remo, natação, pesca, banho recreativo e até para lavar os carros. Toda a família ia de fusca até o rio aos sábados e domingos. Meu pai entrava com o carro até o nível da água submergir metade dos pneus. E então a gente se divertia muito tomando banho e ajudando a lavar o carro. Era um costume local. Várias famílias faziam o mesmo. A gente aproveitava para pescar lambaris e depois fazíamos fritadas. O peixe não era nada saboroso, mas isso era um mero detalhe. O que importava era a diversão.

O Jacuí era parte de nossas vidas. Talvez por isso eu tenha aprendido desde pequeno a respeitar os rios. Era uma relação amistosa e de respeito. Os rios têm correntes muito traiçoeiras, às vezes não é possível detectá-las e em alguns pontos formam-se redemoinhos que podem te sugar para o fundo. Diferente do mar que, mesmo sendo perigoso, tem um comportamento mais previsível. Na minha juventude ouvi falar de várias pessoas que morreram afogadas no Jacuí.

Em Cachoeira havia um clube de remo chamado Grêmio Náutico Tamandaré. E foi lá que tudo aconteceu: um amigo me levou ao clube e foi paixão à primeira vista. O remo me fisgou.

Antes de entrar no rio e navegar de verdade, o treinamento acontecia em uma piscina com remos chamada de banheira. Entre um treino e outro, entrava no galpão e olhava com cobiça para os barcos. Eu apenas estava começando e ainda não os merecia. Passava a mão de leve, acariciando-os, ansioso pelo dia do début. Pouco a pouco comecei a me dedicar ao remo compulsivamente. Podia ser o auge do inverno, com frio e umidade intensos, eu não me importava: pegava minha bicicleta Monareta e descia até o Jacuí para treinar.

Depois de alguns meses na banheira chegou a recompensa. Era hora de remar para valer no rio. Orientados pelo treinador, retiramos com cuidado o barco da estante, suspenso acima de nossas cabeças, e o carregamos assim até o rio. Os antigos “GIGs”, de madeira, mediam uns quatorze metros de cumprimento e deviam pesar mais de cinquenta quilos.

Nunca esqueci o mágico momento de subir no barco pela primeira vez. Era como ser transportado a um universo paralelo. O mundo real era deixado pra trás. Tudo ficava suave, em silêncio. Apenas se escutava a voz do timoneiro ditando o ritmo das remadas.

Algum tempo depois do início dos meus treinamentos o clube anunciou uma regata estadual de fim de ano. Viriam clubes de Porto Alegre e de outras cidades. Nós participaríamos na categoria estreante enfrentando equipes como as do Grêmio e do Internacional. Eu tremia nas bases só de imaginar os remadores da capital com as camisetas dos dois mais importantes clubes gaúchos.

Apesar do entusiasmo de nossa equipe estreante, o clube não levava fé na gente. Eles queriam levar o troféu de qualquer jeito e fizeram jogo sujo: montaram outra equipe com remadores experientes para ser inscrita na categoria estreante. Não sei como conseguiram enganar os outros clubes, já que os novos “estreantes” tinham o dobro de nosso tamanho, com o torso da largura da barragem de Itaipu. A gente não se importou muito com aquilo, estávamos felizes só pelo fato de participar da competição.

No dia da regata, um domingo, todas as famílias estavam presentes no clube. Era o grande evento da cidade. Uma festa. Os pais e parentes estavam ali orgulhosos de seus filhos. E depois da competição ainda teríamos um belo churrasco de confraternização.

Quando entramos com nosso GIG no rio junto com as equipes do Grêmio, Internacional e a falsa equipe estreante, meu coração batia forte de emoção e nervosismo.

Bang! Foi dado o tiro de largada. O timoneiro ditava o ritmo, nos incentivava. Nós éramos sua orquestra.

— Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

Ele nos encorajava a todo momento.

— Mais força a boreste! Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

Remávamos sem parar, sem saber ao certo de onde vinha aquela força toda. Mas a outra equipe “estreante” já ganhava com um barco de diferença. E estávamos empatados com as equipes da capital.

— Um, dois, três, quatro! Força! Lembrem que camisa não ganha jogo!

O timoneiro incansável pedia o impossível para a equipe e conseguiu tirar de nós remadas antes inimagináveis.

— Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

O barco deslizava rápido. Demos tudo que podíamos e até o que não podíamos.
Lembro do rio passando ao meu lado a toda a velocidade e dos respingos dos remos. Nosso GIG era um foguete aquático. E nós, os quatro remadores, éramos os motores à explosão. No finalzinho, meu remo escapou e bateu com força no meu peito. Doeu como um balaço no peito mesmo sem nunca ter levado um tiro. O barco desestabilizou um pouco mas o timoneiro colocou a equipe de volta no prumo.
— Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

Quando ultrapassamos a linha de chegada meu coração parecia que ia saltar pela boca. O final de uma regata parece um orgasmo. Você desaba ao terminar.
O resultado foi incrível: ganhamos das equipes da capital e chegamos em segundo. Ironicamente, só perdemos para a falsa equipe estreante. Conclusão: o clube não precisava ter trapaceado, ganharíamos de qualquer jeito.

Estávamos felizes demais porque sabíamos que éramos os campeões morais.

E enfim chegou a hora do churrasco. Depois de tanto esforço, a fome era de matar! A diretoria do clube, temendo que faltasse comida para os convidados, serviu suas equipes apenas no final. Não sobrou nada de carne para a gente. Talvez um copo de Ki-Suco, ou dois.

Cara, foi um domingo daqueles!

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Rê Bordosa, a primeira vez

Foi num final de tarde frio e úmido na Porto Alegre de 1985. Eu estava no ponto da rua Ramiro Barcelos, esperando o ônibus, quando avistei na banca de jornais o primeiro gibi de tiras da Rê Bordosa. Depois de comprar a revista, embarquei – no ônibus e nas histórias. Ao folhear, cada página me atingia como um soco no estômago. Que desenho do caralho! Que piadas bem sacadas! Nunca vi nada igual! Puta merda! Era isso que eu queria fazer! Por que eu não pensei nisso antes?
 
Minhas sensações eram, ao mesmo tempo, de prazer e dor. Era um prazer ver um trabalho com uma pegada tão moderna e original num momento em que a maioria do quadrinho brasileiro tinha um discurso engajado e tratava de temas políticos. O quadrinho do Angeli era um respiro no meio de tanta imobilidade.
 
Por outro lado, ver algo que era exatamente o que eu queria fazer doeu profundamente, como uma adaga no meu peito. Alguém já tinha feito antes o que meu cérebro planejava fazer, mas necessitava de mais tempo para executar, pensei. Faminto, devorei o gibi durante o trajeto até chegar em casa. Fiquei zonzo. Em seguida, devorei mais uma, duas, três e infinitas vezes.
 
Ainda hoje me pego folheando esse exemplar de uma das melhores personagens da história do gibi brasileiro. De um segundo para o outro, como mágica ruim, meu trabalho ficou ultrapassado! Era hora de pegar outra estrada, seguir uma nova rota.
 
Aí veio a Circo Editorial, do Toninho Mendes, que entrou com seu tsunami de revistas: Chiclete com Banana, Circo, Piratas do Tietê, Níquel Náusea, Geraldão. Cravava-se o AC-DC do quadrinho brasileiro: antes da Circo e depois da Circo. A repercussão foi grande: “Quem disse que não existe literatura de São Paulo? Os quadrinhos são a literatura de São Paulo”, declarou Verissimo; “Naquela época todo desenhista tinha o sonho da revista própria”, comentou espirituosamente Luiz Gê. Até eu tive a minha, a Big Bang Bang, uns oito anos depois. E as revistas continuaram a ser editadas durante anos, com um fôlego inacreditável.

Naquela tarde em Porto Alegre, faltavam uns cinco anos para eu viajar para São Paulo e conhecer o Angeli pessoalmente, além de outros ídolos, como Laerte e Glauco. Algo que, era impensável para mim, um sonho inatingível.

Lembro que levei uma pilha de revistas da Circo para Paris em 1990. Mostrei ao Gilbert Shelton e outros desenhistas de lá. Todos ficaram impressionados com a riqueza e a criatividade de nossa produção. “Sempre soubemos que os brasileiros eram muito criativos, mas isso é demais”, um deles comentou. Nem eles tinham tantos títulos. Acabei dando de presente ao Shelton toda a coleção e isso foi mais do que suficiente para começar uma amizade.

Voltando a 1985, naquela época eu estava enfurnado em uma agência de propaganda de Porto Alegre, atuando como diretor de arte. Nesse papel eu tinha consciência de que era muito ruim. Um verdadeiro canastrão. Um profissional medíocre com uma carreira idem, que não parecia ter chances de decolar, como um avião mal projetado.
Um dia, meu chefe gritou da sala dele:

— Adão, telefone pra você!

— Quem é? — perguntei.

— Toninho Mendes!

Puta que pariu! Devo ter saltado cadeiras e mesas para atender o telefone.

— Alô!

— Aqui é o Toninho Mendes, da Circo. Eu e o Angeli somos vidrados no seu trabalho. Queremos publicar uns cartuns seus na Chiclete com Banana e na Circo.

Eu já tinha tido uns cinco ataques cardíacos até que a voz do outro lado da linha começou a gargalhar. Então reconheci a voz do meu chefe me passando um trote.

Alguns meses depois, eu abandonei a publicidade. E um cartum meu, sobre sadomasoquismo, foi publicado na seção de cartas da Chiclete com Banana. Putz, como fiquei feliz! Eu andava com aquele exemplar na mochila e mostrava orgulhoso para todo mundo. Considerei um grande feito na época.
Uns oito anos após essa primeira publicação minha, quando eu e o Angeli já éramos amigos, ele me contou que esse cartum quase entrou como página inteira na revista. Ele e o Toninho ficaram em dúvida, então o cartum acabou caindo para a seção de cartas.
 Acredito que, se tivesse saído na página inteira, eu teria tido um piripaque dos grandes.

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Millôr, o monstro

Tive o privilégio de conhecer algumas pessoas que considero geniais, com aquele “toque” que faz toda a diferença. Figuram nesse grupo seleto colegas cartunistas, cineastas, artistas, escritores, atores, roteiristas, para citar exemplos. Alguns eu só encontrei en passant, com outros convivi por um período. E tive a sorte de ser amigo íntimo de poucos. Todos gênios e cada um à sua maneira. Há aqueles que nem transparecem genialidade, mas, à medida que o tempo passa, percebemos o quanto são excepcionais.

Um desses gênios merece destaque: Millôr Fernandes. Esse foi o cara mais brilhante que conheci. Arrisco dizer que ele é o cara mais inteligente do mundo. E arriscaria mais ainda: Millôr não é um ser humano. É a personificação de Deus. Só Millôr salva! 

 
Em 2000, Chico Caruso me convidou para um jantar no Marius Crustáceos, que ficava na praia do Leme, Rio de Janeiro. Para minha sorte – e azar do Millôr – sentamos um ao lado do outro. Enquanto eu degustava a linguiça do Marius, observava curioso aquele tiozinho careca, vestido com uma camisa branca bem passada e usando um relógio preto moderninho da Nike.

Para descontrair, no início do jantar fiz uma piada sacana com as linguiças servidas como entrada. Pegou mal. Sou bastante comunicativo e tentei trocar algumas palavras com Millôr. Ele me ignorou com muita classe, me chamando, de forma polida, inteligente e culta, de “surfista ignorante” – na época eu pegava umas ondas no Rio.

Só não joguei um embutido na cara dele porque ele era o… Millôr.

Uma hora, ele pediu um uísque caubói. Bebeu devagar, dando pequenos goles. Em seguida, subiu na mesa e começou a declamar poesias. Confesso que não curto esse tipo de lance em jantares, assim como não curto recitais de violão que não acabam nunca. Mas com o Millôr era diferente. Ele devia ter uns setenta anos e esbanjava a vitalidade de um adolescente. Só faltou finalizar o poema com cambalhotas na mesa.

Ao lado dele, eu me senti um velho. Depois das poesias, ainda fez um discurso. Falou sobre a “solidão intelectual do ser humano”. Disse que o cérebro era um órgão pra lá de complexo, com seus bilhões de neurônios, conexões, sinapses, etc., e que por isso o ser humano estava condenado à solidão intelectual. Olhava para todos enquanto discursava: “…E é por isso que tudo o que eu estou falando agora, ou vocês estão entendendo outra coisa, ou não estão entendendo nada!”.

Enquanto o jantar rolava, eu ia ficando cada vez mais hipnotizado por tamanha genialidade. Terminamos as linguiças e chegaram as lagostas. Ao dar uma mordida no crustáceo, tive uma iluminação e comecei a declamar: A lagosta foi um escorpião que um dia conheceu o mar, não teve medo de entrar na água, e ficou tão feliz que desistiu de produzir veneno.

Todos caíram na gargalhada, menos a divindade calva, que esboçou um leve sorriso. Depois das lagostas, veio o badejo e eu resolvi calar a boca para parecer inteligente.
 

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Veríssimo, a primeira vez

No início dos anos oitenta saí da minha cidade natal, Cachoeira do Sul, e me estabeleci em Porto Alegre. A maioria dos jovens do interior seguia esse mesmo caminho. No trajeto de duzentos  quilômetros, dentro de um ônibus da Unesul, deixei de ser adolescente para virar adulto.
Juro que foi essa a sensação! Incrível como o tempo pode acelerar e também desacelerar.
Daquele momento em diante as brincadeiras da adolescência perderam o sentido e ficaram para trás. Havia chegado a hora de virar adulto. Uma das obrigações da vida que entra sem pedir licença, arrombando a porta.

Dentro do ônibus fiquei preenchendo os formulários de inscrição da UFRGS e da PUC. Na PUC cravei “Publicidade e Propaganda” e na UFRGS não encontrei essa opção e escolhi Química. Escolhi esse curso porque era a matéria que eu mais gostava no segundo grau. E eu gostava por causa de um professor genial que tive, que sempre fumava na classe. Numa das aulas, uma colega acendeu um cigarro e ele pediu para ela apagar. A menina contestou:

-Mas você está fumando.

E ele respondeu, espirituoso:

-Eu posso porque eu sou professor.

Poderia soar autoritário, mas dito por ele não. Minha colega apagou o cigarro enquanto o professor continuou fumando o dele. 

Havia um detalhe no formulário da UFRGS: Publicidade e Propaganda estava dentro do curso de Comunicação Social. E eu não sabia disso. Parece uma piada, mas aconteceu de verdade. No final das contas, passei no vestibular da PUC e levei pau em Química. Melhor assim. Sem dúvida as Humanas tinham muito mais a ver comigo.

Um ano depois fiz o vestibular novamente. Dessa vez, passei em Artes Plásticas na Federal e comecei a cursar as duas faculdades ao mesmo tempo. Como os cursos até então não me exigiam muito, deu para tocar adiante sem que eu enlouquecesse de tanto estudar.

Eu tinha vinte anos e a vida estava despertando novamente para mim. Agora eu estava na capital gaúcha e as opções culturais eram imensas. Passei a devorar todo o tipo de cultura e conheci pessoas que foram fundamentais para o meu futuro. Quadrinhos eu desenhava muito e publicava quase nada. Faltava fazer boas conexões.

Um dia eu estava mostrando minha pasta de cartuns no bar do Instituto de Artes. E notei um cara estranho no fundo, vestindo capote e um estiloso chapéu russo. Ele parecia estar interessado na minha pasta, se chamava Alemão Guazzelli e também desenhava quadrinhos. Na época ele fazia um fanzine chamado Kamikaze. Eu não me atrevi a pedir para publicar no fanzine dele porque achava o meu desenho muito tosco. Papo vai, papo vem, um dia descobri que ele era amigo do escritor Luís Fernando Verissimo, que todos diziam ser um cara acessível e simpático. Pedi a ele o telefone do Verissimo, assim meio sem jeito, e ele me deu. Agora era comigo.

Um dia, respirei fundo, tomei coragem e resolvi ligar para a casa dele, de um orelhão. Lúcia, sua esposa, atendeu:

-Eu gostaria de falar com o Verissimo.

-Quem está falando?

-Ele não me conhece. Quem me passou o telefone foi o Alemão Guazzelli. Me chamo Adão. Faço quadrinhos. Queria mostrar meu trabalho a ele.

-Espera um minuto que eu vou chamá-lo.

Pausa. Eu estava muito nervoso. Então senti que alguém pegou o telefone. Meu coração parecia que ia explodir. De repente alguém fala. Reconheci a voz dele das entrevistas na TV:

-Quem fala?

Repeti todo discurso anterior e ele me disse:

-Legal, passa aqui semana que vem. Terça está bom pra você?

Como assim está bom pra “mim”, pensei? Porra! Se ele dissesse para eu passar no dia 29 de fevereiro, eu estaria lá nesse dia.

Na época eu morava no bairro Partenon. Verissimo morava no bairro Petrópolis. São bairros vizinhos e eu até já o tinha visto no ônibus, ele às vezes pegava a mesma linha para ir até o centro. Estávamos distantes por uns quinze minutos de caminhada.

A terça-feira enfim chegou. E lá estava eu, na porta na casa do Verissimo. Toquei a campainha e a Lúcia veio me atender. Ela gentilmente me ofereceu uma poltrona em uma antessala.

-Espera que eu vou chamá-lo.

Esperei cinco minutos que pareceram cinco horas. Enfim ele chegou e nos cumprimentamos. Sentou na poltrona à minha frente e entreguei minha pasta a ele. Ele não era de falar muito. Começou a folhear a pasta sem pressa e de vez em quando ria de algumas piadas. A cada risada dele meu ego tinha orgasmos múltiplos.

Depois de olhar a pasta, disse:

-Muito legal o seu trabalho. Tem influência do Wolinski, Glauco, Henfil. Publica em algum lugar?

Disse que não, e ele continuou:

-Tenho um amigo em São Paulo. Se quiser posso te conseguir o telefone dele.

-Ah, legal. Obrigado.

-Ele se chama Angeli.

Me passou o telefone e disse:

-Diz que foi recomendado por mim.

Nos despedimos. Acabei não ligando para o Angeli, eu achava meu trabalho ruim para as revistas da editora dele, a Circo.

Na semana seguinte deixei um flyer da minha primeira exposição individual de quadrinhos para o Verissimo que foi no Espaço IAB em Porto Alegre. Para minha surpresa, ele publicou o cartum meu do flyer na sua coluna do jornal Zero Hora. Ele escreveu bem sobre mim, sobre meu trabalho e indicou a exposição!

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Asterix e Tintim

Aprendi a ler antes de entrar no primário. E posso dizer que meus primeiros professores eram famosos. Walt Disney e Mauricio de Sousa eram seus nomes.

Pois é, fui alfabetizado com histórias em quadrinhos. Meu principal passatempo na infância era folhear gibis. Aquelas imagens em sequência e aqueles balões com símbolos enigmáticos me hipnotizavam. No início minha tia me deu umas dicas e depois de algum tempo comecei a decifrar o conteúdo dos balões. Os desenhos tornavam a tarefa mais fácil. Meus pais me contaram que um dia ficaram espantados quando me viram soletrar e pronunciar algumas palavras, mesmo que ainda não tivesse sido oficialmente alfabetizado.

Meu grande tesouro estava debaixo da minha cama: caixas de papelão cheias de gibis. Meus personagens preferidos eram Mickey, Pato Donald, Zé Carioca, Tio Patinhas, Mônica e Cebolinha. Mas a lista continuava. Tinha também gibi do Recruta Zero, Bolota e um pouco de super-heróis. Ah, e tinha a revista Kripta, um clássico do terror e algumas HQs eróticas. De putaria, para ser mais claro.

Um dia peguei um gibi do meu pai chamado Tex. Eu já tinha passado os olhos nele, mas não achava muita graça porque era em preto e branco. Tempos depois, quando peguei o ritmo da leitura e li o primeiro volume, fiquei viciado no ranger Tex Willer. Comprei todos os álbuns que pude, garimpando em bancas e sebos. As aventuras eram emocionantes. Lembro que não conseguia interromper as leituras no meio. E quando terminava, não sossegava até ler a próxima história. Depois fiquei sabendo que um amigo tinha todos os gibis do Tex. E ele queria se desfazer da coleção. Então combinamos uma troca. Ele gostava de umas almofadas que eu tinha em casa. E assim eu consegui toda a coleção do Tex em troca de quatro almofadas. As almofadas eram da minha mãe. Felizmente ela nunca notou o sumiço.
 
Na época dos gibis da infância, o tempo passou um pouco e eu já lia perfeitamente. E aos dez anos fui apresentado ao quadrinho europeu, quase ao acaso. Uma noite meus pais foram jogar cartas na casa de um casal de amigos. Era madrugada e a jogatina continuava. Eu estava completamente entediado. O dono da casa, o chamavam de Pito, percebendo a situação, me levou até a confortável sala de leitura e me mostrou sua coleção de álbuns de quadrinhos. Ele tinha todos os livros do Asterix e Tintim. Eram pilhas e pilhas! Até aquele momento eu nunca tinha tido contato com o quadrinho europeu. Era algo novo para mim. Então li o primeiro e não consegui mais parar.

Em cada visita ao casal amigo de meus pais eu devorava uns três ou quatro álbuns, alternando entre Asterix e Tintim. Pito era culto e de vez em quando me explicava o contexto histórico de Asterix e Tintim. Eu sentia que era a primeira vez que eu estava lendo um quadrinho com mais densidade, com mais substância, não sabia explicar. Era diferente. Eu me entretinha e ainda aprendia geografia e história. Um dia terminei de ler todos os gibis. Então eu recomecei do zero e foi tão prazeroso quanto da primeira vez. Eu chegava a suplicar aos meus pais para eles voltarem àquela casa. 
Até que um dia meus pais deixaram de visitar os amigos e eu nunca mais ouvi falar deles. Serei eternamente grato a esse casal.

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Infância analógica

Nasci em 1965 em Cachoeira do Sul, uma cidade encravada no centro do estado do Rio Grande do Sul. A região se chamava “Depressão Central”.

No meu tempo, na Idade da Pedra Lascada, os aparatos  mais modernos eram a TV e o aparelho de som 3 em 1. O 3 em 1 era o objeto de desejo daqueles tempos: conjugava rádio AM e FM, toca-discos e gravador cassete. E esses eram os produtos com tecnologia de ponta. Havia o barbeador elétrico também, mas eu ainda não precisava usar. Telefone só existia o fixo. O modelo clássico de telefone, que pode ser visto em fotos e filmes do século passado, tinha um disco com dez furos do diâmetro de um dedo cada. Era um furo para cada número. A gente discava o primeiro número e esperava o disco voltar à posição inicial para discar o número seguinte. Trabalhoso, sim, mas era divertido.
Com o tempo, foram surgindo os telefones com botões. Sem dúvida eram mais práticos, mas não tinham o charme do modelo anterior. E muito depois, na Idade da Pedra Polida, surgiram os telefones sem fio. Os primeiros nunca funcionavam direito porque o chiado aumentava à medida que se distanciava o fone da base e a conversa ficava impossível com aquela barulheira. Então era praticamente obrigatório ficar próximo e acabava sendo o mesmo que ter um telefone com fio.

Quando eu tinha seis anos, algo inesperado aconteceu. Numa tarde, bateu aquela vontade de tomar sorvete e fui até o posto de gasolina próximo para comprar um. Uni-duni-tê salamê minguê o escolhido foi um picolé de coco da Kibon. Eu estava com água na boca. O picolé foi comido em segundos. Quando terminei, notei algo no palito. Aproximei meus olhos e li com atenção: “vale um toca-discos”. Fiquei olhando para aquela inscrição sem acreditar no que estava vendo. Pisquei. Pisquei de novo. Então li novamente: o “vale um toca-discos” ainda estava escrito no palito do picolé. Fui correndo mostrar para Elza, que trabalhava em casa. Ela me desdenhou e disse que era mentira minha. Virei as costas para Elza enquanto ela perguntava onde eu ia com tanta pressa. Voltei correndo ao posto de gasolina e mostrei o palito premiado ao dono. Ele me felicitou e confirmou que eu havia ganhado o prêmio.

Uma semana depois chegou o toca-discos. Era cor de laranja, portátil, com o autofalante na tampa. Tiraram uma foto minha no posto de gasolina segurando o aparelho. A foto saiu na capa do Jornal do Povo, o jornal local. Uma vizinha me disse que eu havia nascido com o cu virado para a lua. Naquele momento me senti especial e realmente acreditei que eu era sortudo.

No meu tempo, o Período Paleolítico, não existia videogame. Em compensação, havia as máquinas pinballs. O pinball foi a minha maior obsessão na infância. Eu passava todas as tardes no “Showtime”, o primeiro fliperama de Cachoeira do Sul.

Nasci um ano depois do golpe militar. Durante os meus primeiros anos corriam os anos de chumbo, embora eu nunca tivesse me dado conta disso na época. Era muito pequeno e meus pais não estavam nem aí. Eles queriam dinheiro, estabilidade e nada mais. Não almejavam utopias e pareciam não ter nenhuma ideologia. Lembro vagamente de algumas coisas. Como de uma música ufanista que dizia mais ou menos assim: “Eu te amo meu Brasil, eu te amo. Ninguém segura a juventude do Brasil…”. E tinha um slogan famoso também que era “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Minhas principais atividades na Pré-História eram: comer fruta no pé, jogar futebol no barro e arrumar briga com “estranhos”. Não exatamente nessa ordem. As frutas eram deliciosas. Os jogos de futebol eram verdadeiros clássicos da lama. E as brigas eram limpas, qualquer tipo de arma era proibido. No máximo uma pedra ou um pedaço de pau.

Tudo era muito mais tranquilo naquela época. Não se ouvia falar de assaltos e assassinato só rolava um a cada dez anos. Eu ia sozinho e caminhando até a escola. Podia andar sossegado à noite. Até os meus dezoito anos devo ter visto somente uma arma de fogo. Era um rifle que o meu avô usava na chácara para caçar e espantar bichos.

Ler gibis e assistir desenho animado na TV eram outros dos meus passatempos prediletos. Além de adorar todo tipo de esporte: futebol, tênis e remo foram alguns dos que pratiquei.

Lembro que eu não perdia um capítulo de “O Sítio do Picapau Amarelo”. E meus desenhos preferidos eram Tom & Jerry, Corrida Maluca, Pica-Pau, Pantera Cor de Rosa e Popeye. Só que minha Pantera não era rosa porque nossa TV era em preto e branco. Nessa época quase não havia TV colorida no Brasil, então eu me sentia enganado com minha Pantera Cor de Rosa cinza.

Do pátio de trás da minha casa eu avistava a casa do vizinho. Eles tinham muito mais grana que a gente. Um dia na janela da sala deles brilhavam umas luzes coloridas. Curioso, pulei o muro – naquela época, a gente pulava muros sem levar tiro – e me aproximei da janela. Era a primeira vez que eu via uma TV em cores! Entrei sem bater, afinal, éramos muito amigos, e a primeira coisa que fiz foi aproximar meu rosto até o nariz encostar na tela. Ah, aqueles pixels com as cores básicas separadas! Eu estava hipnotizado… A marca da TV era Telefunken. E era maior e mais nítida do que a nossa.

Desse dia em diante eu passava as tardes assistindo TV na casa dos vizinhos. Enfim, a Pantera Cor de Rosa era de fato rosa, Pica-Pau tinha a crista vermelha e o corpo azul e a calça do Popeye era azul-marinho, como tinha que ser. O problema era quando eu voltava para minha casa e tinha que voltar para o mundo das sombras em preto e branco. Era como tomar vinho Luigi Bosca e depois ter que encarar um Sangue de Boi. Cheguei a colar papel celofane colorido na nossa TV, mas o efeito não era o mesmo. Para mim, ao avistar as cores pixeladas naquela Telefunken do vizinho, havia terminado uma era e outra começava, bem diante de meu nariz.

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