Remar é preciso

Remo foi um dos esportes que pratiquei a sério na adolescência. Pode parecer que esporte não combine muito comigo, mas eu fiz de tudo: futebol, tênis, handebol, basquete, ginástica olímpica, halterofilismo, skate, maratona, natação, surfe e ciclismo.
 
Nas aulas de educação física do segundo grau o professor notou que eu tinha uma boa performance no salto triplo e me incentivou a treinar para competir em um campeonato estadual. Viajei a Porto Alegre para participar do torneio e acabei levando o terceiro lugar. Só que fiquei muito aquém das marcas dos outros dois competidores vencedores. O primeiro lugar era um negro enorme com as pernas da minha altura que deve ter saltado o dobro da distância do meu salto.
 
Eu realmente gostava muito de esporte. Nos fins de semana pegava a bicicleta e fazia sessenta quilômetros no asfalto.

A cidade de Cachoeira do Sul, onde nasci, é lambida por um rio importante, o Jacuí. O rio servia para remo, natação, pesca, banho recreativo e até para lavar os carros. Toda a família ia de fusca até o rio aos sábados e domingos. Meu pai entrava com o carro até o nível da água submergir metade dos pneus. E então a gente se divertia muito tomando banho e ajudando a lavar o carro. Era um costume local. Várias famílias faziam o mesmo. A gente aproveitava para pescar lambaris e depois fazíamos fritadas. O peixe não era nada saboroso, mas isso era um mero detalhe. O que importava era a diversão.

O Jacuí era parte de nossas vidas. Talvez por isso eu tenha aprendido desde pequeno a respeitar os rios. Era uma relação amistosa e de respeito. Os rios têm correntes muito traiçoeiras, às vezes não é possível detectá-las e em alguns pontos formam-se redemoinhos que podem te sugar para o fundo. Diferente do mar que, mesmo sendo perigoso, tem um comportamento mais previsível. Na minha juventude ouvi falar de várias pessoas que morreram afogadas no Jacuí.

Em Cachoeira havia um clube de remo chamado Grêmio Náutico Tamandaré. E foi lá que tudo aconteceu: um amigo me levou ao clube e foi paixão à primeira vista. O remo me fisgou.

Antes de entrar no rio e navegar de verdade, o treinamento acontecia em uma piscina com remos chamada de banheira. Entre um treino e outro, entrava no galpão e olhava com cobiça para os barcos. Eu apenas estava começando e ainda não os merecia. Passava a mão de leve, acariciando-os, ansioso pelo dia do début. Pouco a pouco comecei a me dedicar ao remo compulsivamente. Podia ser o auge do inverno, com frio e umidade intensos, eu não me importava: pegava minha bicicleta Monareta e descia até o Jacuí para treinar.

Depois de alguns meses na banheira chegou a recompensa. Era hora de remar para valer no rio. Orientados pelo treinador, retiramos com cuidado o barco da estante, suspenso acima de nossas cabeças, e o carregamos assim até o rio. Os antigos “GIGs”, de madeira, mediam uns quatorze metros de cumprimento e deviam pesar mais de cinquenta quilos.

Nunca esqueci o mágico momento de subir no barco pela primeira vez. Era como ser transportado a um universo paralelo. O mundo real era deixado pra trás. Tudo ficava suave, em silêncio. Apenas se escutava a voz do timoneiro ditando o ritmo das remadas.

Algum tempo depois do início dos meus treinamentos o clube anunciou uma regata estadual de fim de ano. Viriam clubes de Porto Alegre e de outras cidades. Nós participaríamos na categoria estreante enfrentando equipes como as do Grêmio e do Internacional. Eu tremia nas bases só de imaginar os remadores da capital com as camisetas dos dois mais importantes clubes gaúchos.

Apesar do entusiasmo de nossa equipe estreante, o clube não levava fé na gente. Eles queriam levar o troféu de qualquer jeito e fizeram jogo sujo: montaram outra equipe com remadores experientes para ser inscrita na categoria estreante. Não sei como conseguiram enganar os outros clubes, já que os novos “estreantes” tinham o dobro de nosso tamanho, com o torso da largura da barragem de Itaipu. A gente não se importou muito com aquilo, estávamos felizes só pelo fato de participar da competição.

No dia da regata, um domingo, todas as famílias estavam presentes no clube. Era o grande evento da cidade. Uma festa. Os pais e parentes estavam ali orgulhosos de seus filhos. E depois da competição ainda teríamos um belo churrasco de confraternização.

Quando entramos com nosso GIG no rio junto com as equipes do Grêmio, Internacional e a falsa equipe estreante, meu coração batia forte de emoção e nervosismo.

Bang! Foi dado o tiro de largada. O timoneiro ditava o ritmo, nos incentivava. Nós éramos sua orquestra.

— Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

Ele nos encorajava a todo momento.

— Mais força a boreste! Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

Remávamos sem parar, sem saber ao certo de onde vinha aquela força toda. Mas a outra equipe “estreante” já ganhava com um barco de diferença. E estávamos empatados com as equipes da capital.

— Um, dois, três, quatro! Força! Lembrem que camisa não ganha jogo!

O timoneiro incansável pedia o impossível para a equipe e conseguiu tirar de nós remadas antes inimagináveis.

— Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

O barco deslizava rápido. Demos tudo que podíamos e até o que não podíamos.
Lembro do rio passando ao meu lado a toda a velocidade e dos respingos dos remos. Nosso GIG era um foguete aquático. E nós, os quatro remadores, éramos os motores à explosão. No finalzinho, meu remo escapou e bateu com força no meu peito. Doeu como um balaço no peito mesmo sem nunca ter levado um tiro. O barco desestabilizou um pouco mas o timoneiro colocou a equipe de volta no prumo.
— Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!

Quando ultrapassamos a linha de chegada meu coração parecia que ia saltar pela boca. O final de uma regata parece um orgasmo. Você desaba ao terminar.
O resultado foi incrível: ganhamos das equipes da capital e chegamos em segundo. Ironicamente, só perdemos para a falsa equipe estreante. Conclusão: o clube não precisava ter trapaceado, ganharíamos de qualquer jeito.

Estávamos felizes demais porque sabíamos que éramos os campeões morais.

E enfim chegou a hora do churrasco. Depois de tanto esforço, a fome era de matar! A diretoria do clube, temendo que faltasse comida para os convidados, serviu suas equipes apenas no final. Não sobrou nada de carne para a gente. Talvez um copo de Ki-Suco, ou dois.

Cara, foi um domingo daqueles!

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